O governo federal lançou a Medida Provisória 927 , que dispõe sobre “as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública, reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid- 19), e dá outras providências”.
Pela MP, até 31 de dezembro de 2020, período de vigência do estado de calamidade pública estabelecido no Decreto, os empregadores passam a dispor de vantagens e facilidades para alterar os contratos de trabalho unilateralmente ou mediante acordo individual, sobrepondo-se inclusive à legislação, acordos e convenções coletivas previamente assinadas.
As medidas propostas
A Medida Provisória é composta por 11 capítulos e 32 artigos que versam sobre aspectos importantes das relações de trabalho, todos objetos de legislações específicas e/ou de contratos coletivos de trabalho.
Desconsiderando a participação dos sindicatos, as empresas ficam autorizadas a celebrarem contratos individuais com o trabalhador, com vistas à manutenção do vínculo de emprego, sem qualquer obrigação de efetivamente mantê-lo. Esses contratos terão preponderância sobre os demais instrumentos normativos em vigor (acordos coletivos, convenções coletivas e toda legislação infraconstitucional), enquanto perdurar o estado de calamidade pública.
Desde já, dois questionamentos:
1. Se a crise atinge o conjunto dos trabalhadores, por que não subordinar eventuais soluções à negociação coletiva com os sindicatos, numa hora em que o trabalhador, individualmente, encontra-se tão fragilizado?
2. Como impedir que um empregador inescrupuloso force um acordo individual amplo e o caracterize como “com vistas à manutenção do vínculo de emprego” – termo por demais genérico – , sem sequer assegurar de fato esse vínculo?
As medidas não asseguram a manutenção do emprego, tampouco a remuneração dos trabalhadores, como será visto a seguir.
Logo de início, o texto faz menção à hipótese de “força maior”, prevista no Artigo 501 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), para caracterizar a situação de calamidade pública. Nesse sentido, a MP autoriza, entre outras ações, a redução salarial de até 25%, sem correspondente redução da jornada, como disposto no Artigo 503 da mesma CLT, a saber:
artigo 503 – É lícita, em caso de força maior ou prejuízos devidamente comprovados, a redução geral dos salários dos empregados da empresa, proporcionalmente aos salários de cada um, não podendo, entretanto, ser superior a 25% (vinte e cinco por cento), respeitado, em qualquer caso, o salário mínimo da região.
Ademais, a CLT prevê no artigo 502 que, em caso de força maior, a indenização de 40% dos depósitos do FGTS por dispensa sem justa causa em decorrência de fechamento de empresa ou estabelecimento deverá ser paga pela metade. Ou seja, a MP reduz o custo das dispensas para os empregadores que fecharem seus estabelecimentos até o final do ano.
É preciso dizer que a medida é controversa, pois há dúvidas a respeito da constitucionalidade do artigo 503, dado que a Constituição Federal condiciona a redução salarial à negociação coletiva.
Em seguida, a MP elenca um conjunto de medidas que poderão ser adotadas pelas empresas para o enfrentamento da atual conjuntura, das quais se destacam:
•Teletrabalho , adotado a critério do empregador, independentemente da existência de acordo individual ou coletivo prévio a respeito; importa notar que o empregador não é obrigado a estabelecer o teletrabalho mesmo quando a situação epidêmica colocar em risco a saúde dos empregados, revelando que essa medida atende apenas o interesse de uma das partes.
• Antecipação das férias individuais por ato unilateral da empresa, com aviso ao trabalhador de apenas 48 horas (a CLT exige 30 dias), e com postergação do pagamento do adicional para 20 de dezembro. Com isso, o trabalhador dedicará o direito às férias para o cumprimento das determinações de distanciamento social, e não poderá usufruí-las num período mais favorável. A MP inclusive permite que férias futuras venham a ser antecipadas, ainda que não se tenha completado o período aquisitivo.
• Concessão de férias coletivas , sem o limite máximo de dois períodos por ano e sem a garantia de duração mínima de 10 dias, bem como dispensando a comunicação ao sindicato. Novamente se utiliza o direito do trabalhador às férias futuras, visando reduzir o custo que o empregador terá em manter o emprego durante o tempo de calamidade.
• Aproveitamento e antecipação de feriados federais não religiosos , sem concordância do empregado (os feriados religiosos também podem ser antecipados, caso haja a concordância do empregado). Na mesma linha das outras medidas, os dias não trabalhados durante a calamidade serão compensados no trabalho em feriados no futuro.
• Banco de horas estabelecido por acordo individual ou coletivo para compensação em prazo ampliado de até 18 meses, a partir do encerramento do período de calamidade (ou seja, a princípio até meados de 2022) com compensação de horas definida exclusivamente pelo empregador. Vale lembrar que atualmente a compensação do banco de horas, pela lei, é de seis meses, o que significa que as horas não trabalhadas ao longo deste ano serão repostas no futuro.
• Suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho , como exames médicos ocupacionais (exceto os exames médicos demissionais) e treinamentos periódicos e eventuais previstos em normas regulamentadoras de segurança e saúde do trabalho. A MP não obriga o empregador a proporcionar treinamento visando medidas de prevenção do contágio e propagação do coronavírus no ambiente de trabalho.
•Suspensão do contrato de trabalho por até quatro meses , com direcionamento do trabalhador para curso ou programa de qualificação não presencial, sem necessidade de acordo coletivo prévio e sem que o trabalhador faça jus ao percebimento de remuneração no período, salvo benefícios voluntariamente concedidos pelo empregador, tais como plano de saúde e vale-refeição. A MP define, ainda, que não haverá a concessão da bolsa-qualificação pelo governo, bolsa correspondente ao seguro- desemprego durante o período de afastamento, ao contrário do que ocorre em casos semelhantes (lay-off), com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Além disso, a MP não garante que o contrato de trabalho suspenso não possa ser rescindido durante ou após a suspensão, como é previsto na legislação atualmente em vigor; ou seja, nesse ponto a MP é um retrocesso em relação a medidas que foram amplamente utilizadas nas recessões de 2008-09 e de 2015-16.
• Postergação do recolhimento do FGTS de março, abril e maio pelas empresas, para pagamento parcelado em seis vezes a partir de julho. Mais uma medida que beneficia apenas os empregadores.
• Prorrogação das jornadas dos trabalhadores da saúde , mediante acordo individual escrito e possibilidade de que esses trabalhadores, quando trabalhem em turnos, possam ter jornadas de 12hx12h, a compensar posteriormente em banco de horas.
• Prorrogação de acordo coletivo por mais 90 dias além da vigência estabelecida, a critério exclusivo do empregador. Ou seja, o empregador não será obrigado a prorrogar a vigência.
• Suspensão da fiscalização do trabalho por seis meses, exceto para violações extremamente graves como o trabalho sem registro, o trabalho infantil ou análogo à escravidão.
• Descaracterização do Covid-19 como doença ocupacional , mesmo para trabalhadores contaminados da área da saúde ou de atividades que não podem ser paralisadas, exceto se houver comprovação do nexo causal.
Destaca-se, no conjunto, a dispensa da participação das entidades sindicais laborais no estabelecimento das ações pelas empresas, tornando notório o desprezo do governo a qualquer processo de negociação entre empresas e sindicatos, o que enfraquece o lado dos trabalhadores nesse momento agudo de crise. É notório também o descaso com as condições de vida e de segurança do trabalhador, visto que não são propostas quaisquer medidas econômicas ou sanitárias nesse sentido. Pelo contrário, fica a critério do empregador dispensar ou não a jornada de trabalho dos empregados, sem medida compensatória, seja da empresa ou do Estado.
Somam-se a isso as medidas que visam à interrupção da fiscalização do trabalho. Pelo visto acima, as medidas anunciadas até o momento (o governo afirma que complementará) só atenderam o setor empresarial e se baseiam unicamente na redução das prerrogativas dos trabalhadores, das regras que regulam a duração e a execução da jornada, da concessão de férias, da organização de turnos de revezamento e da vigência dos acordos e convenções coletivas. Sabe-se que a negociação individual entre empregado e empregador é totalmente desequilibrada em favor deste último, o que se acentua ainda mais num momento de crise e desemprego. Portanto, na prática, a renegociação dos contratos se constitui em carta branca para os empregadores imporem os próprios interesses em detrimento dos trabalhadores. E, para viabilizar a soberania do empresário, o governo tolhe ainda mais as prerrogativas dos sindicatos em defender os trabalhadores a entidade representa.
O governo até o momento não deu resposta concreta aos desafios que a pandemia do coronavírus coloca ao país. Por um lado, a epidemia tende a paralisar e desorganizar o sistema produtivo, afetando até mesmo aquilo que é essencial para a sociedade. A MP não prevê como os empregadores deveriam agir para conduzir o trabalho e a produção do que for preciso manter, sem que os trabalhadores adoeçam. Por outro, a demanda por bens e serviços tende a cair abruptamente pela perda de renda das famílias e a MP não estabelece medidas mitigadoras desse efeito. Não fala da garantia dos empregos e da manutenção da renda dos trabalhadores, sejam eles formais ou mesmo informais. Com isso, o governo segue na contramão das medidas que vêm sendo adotadas por inúmeros países e recomendadas pelos organismos internacionais.
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