Privatização e terceirização no setor elétrico brasileiro

Terceirização somente podia ser aplicada nas áreas-meio do processo produtivo

Por Gustavo Teixeira e Samuel Nogueira Costa

 

No Brasil, até a aprovação do Projeto de Lei Complementar nº 30, de 2015 (PLC 30/2015), a terceirização somente podia ser aplicada nas áreas-meio do processo produtivo. Após um intenso debate sobre o tema no Congresso Nacional e a chancela do Superior Tribunal Federal (STF), a terceirização foi permitida também nas áreas-fim. No entanto, mesmo antes da aprovação da terceirização irrestrita, esta já era estimulada no setor elétrico brasileiro. De um lado, pelo próprio modelo regulatório baseado na “eficiência” de custos, e de outro, pela Lei de Concessões de 1995¹. O referido modelo prevê que “a concessionária poderá contratar com terceiros o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço concedido”.

A terceirização em massa no setor elétrico brasileiro teve início na segunda metade da década de 1990, na esteira do processo de privatização das concessionárias estaduais de distribuição, quando cerca de 80% das empresas deste segmento foram privatizadas. Nos anos subsequentes, houve uma redução de quase metade do emprego formal no setor. De acordo com o DIEESE (2017)², o número de vínculos formais passou de 185 mil em 1994 para 97 mil em 2001. Desde então, o número de trabalhadores terceirizados foi crescendo e atualmente supera o número de trabalhadores do quadro próprio.

Os casos recentes de privatização das concessionárias de distribuição da Eletrobras reforçam os argumentos em prol da relação entre privatização e terceirização. Logo após a privatização da Celg-D (GO), por exemplo, cerca de 800 trabalhadores próprios foram demitidos e a proporção de trabalhadores terceirizados, que já era alta, aumentou ainda mais. Em 2019, a Celg-D (GO), a Enel Rio (RJ) e a Coelce (CE), todas controladas pelo Grupo ENEL, figuraram entre as líderes em terceirização no setor elétrico.

O mesmo ocorreu após a privatização da Ceal (AL). Vendida para o Grupo Equatorial em 2018, a concessionária já acumula mais de 700 demissões, parte delas durante o estado de calamidade pública devido à pandemia da Covid-19. Como resultado, a Ceal (AL) ingressou em 2019 no grupo das concessionárias que possuem as maiores proporções de trabalhadores terceirizados.

Tomando como base as informações das demonstrações contábeis e os relatórios de sustentabilidade de algumas das maiores concessionárias de distribuição de eletricidade no Brasil, é possível observar na Tabela 1, abaixo, que existem casos nos quais as empresas têm atuado com a quase totalidade da sua força de trabalho terceirizada. Cinco das 11 concessionárias selecionadas apresentaram um percentual de trabalhadores terceirizados superior a 80% da força de trabalho em 2019.

Fonte: Demonstrações Financeiras e Relatórios de Sustentabilidade das empresas. 

Elaboração própria. 

 

Como se sabe, a terceirização está fortemente associada à precarização do trabalho, que, por sua vez, tem implicações na qualidade do serviço prestado. Estudos recentes têm destacado a sua relação com a situação de trabalhadores em condições análogas à escravidão, inclusive no setor elétrico brasileiro. Os salários baixos e muitas vezes de remuneração variável, a elevada escala de serviços e as condições inadequadas de trabalho são algumas das características dessa forma de contratação. Tais fatores interferem na segurança do trabalho.

 

No setor elétrico, os acidentes geralmente levam a óbito. Quando isso não acontece, a maioria das vítimas fica com gravíssimas sequelas, como mutilações e queimaduras. De acordo com os números da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), entre 2009 e 2019 foram registradas 527 mortes decorrentes de acidente de trabalho na rede elétrica ‒ 439 de trabalhadores terceirizados e 88 do quadro próprio. No ano passado ocorreram 23 mortes decorrentes de acidente de trabalho na rede elétrica, todas de trabalhadores terceirizados – a metade delas com trabalhadores que prestavam serviço para as concessionárias de distribuição que constam na tabela apresentada acima.

Cabe destacar ainda que a maioria das empresas contratadas pelas concessionárias não possui o seu Código Nacional de Atividade Econômica (CNAE) vinculado ao setor elétrico, o que dificulta a fiscalização por parte dos órgãos competentes, tal como o Ministério Público do Trabalho.

Apesar de todos esses fatores, a ANEEL não possui registro e, portanto, não exerce nenhum tipo de fiscalização sobre as empresas que são contratadas pelas concessionárias para prestar o serviço à população. Ademais, a elevada proporção de trabalhadores terceirizados sugere que a estratégia adotada em resposta ao estímulo regulatório à redução de custos com pessoal, além de ter reflexos negativos nas relações de trabalho, está chegando ao seu limite em algumas concessionárias.

Para além dos elementos destacados, a terceirização aparece como uma estratégia patronal de desmobilização e desconstrução da representatividade sindical. Diante desse fenômeno global, os trabalhadores terceirizados têm dificuldade de construção de pautas políticas coletivas, pois os regimes de trabalho a que se acham submetidos passam por um alto grau de controle político. Demissões e perseguições fazem parte de uma dura realidade laboral.

Enfim, há evidências de uma relação perversa entre a privatização e as relações de trabalho no setor elétrico brasileiro. É possível afirmar que do ponto de vista do trabalhador, a privatização possui um caráter negativo. Isso se torna mais problemático quando se leva em conta que, diante do atual cenário mundial de crise econômica e elevação do desemprego em decorrência da pandemia da Covid-19, segue em curso no Brasil uma série de tentativas de privatização de empresas do setor, entre as quais estão a maior empresa de energia elétrica da América Latina, a Eletrobras, e as concessionárias de distribuição no Sul, CEEE-D (RS), e no Centro-Oeste do país, CEB-D (DF).

 

Gustavo Teixeira é economista, assessor do Coletivo Nacional dos Eletricitários (CNE).

Samuel Nogueira Costa é doutorando em Sociologia na Universidade de Brasília.

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